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Busca por oportunidades

  • Renata Ely -

Reportagem conta a história de dois imigrantes haitianos, Shiller e Stanley, que deixaram suas casas em busca de melhores condições no Brasil

Desastre natural 

Terça-feira, 12 de janeiro de 2010. Poderia ser uma tarde normal para qualquer pessoa. Mas, para muitas, não foi. 16h53. Um forte terremoto de magnitude 7, na escala Richter, não somente atingiu, mas devastou parte do Haiti. Oficialmente o país é reconhecido como República do Haiti. Localizado no Caribe, ocupa uma pequena porção ocidental da ilha de Hispaniola, no arquipélago Antilhas, que partilha com a República Dominicana. O país é caracterizado por ser a primeira nação independente do Caribe, a primeira república negra do mundo e o primeiro país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão, além de contar com inúmeros cenários litorâneos.

As manchetes da semana noticiavam o tremor como o mais forte a afetar o país nos últimos 200 anos. O epicentro do sismo foi a poucos quilômetros da capital, Porto Príncipe. De acordo com matéria publicada pelo G1, dois dias após o desastre, a situação humanitária do país, considerado como o mais pobre das Américas, estava caótica. Os dados publicados pela emissora apontavam que pelo menos 200 mil pessoas morreram, enquanto 300 mil ficaram feridas e 4 mil foram amputadas.   

"Esse é um desastre histórico. Nós nunca fomos confrontados com esse tipo de desastre na memória da Organização das Nações Unidas (ONU). É como nenhum outro", destacou a porta-voz do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da Organização, na época.

Um ano após a fatalidade, o primeiro-ministro do Haiti, Jean-Max Bellerive, afirmou em entrevista coletiva da Comissão Interina de Reconstrução do Haiti, que o total de vítimas do terremoto era superior a 316 mil pessoas. Desta forma, a recuperação de mais corpos durante o ano contribuiu para o aumento do total de vítimas. Além disso, mais de um milhão e meio de haitianos perderam suas casas.

A situação do Haiti, em decorrência da crise política e econômica já existente, que agravou com o terremoto, fez com que milhares de haitianos buscassem uma vida melhor em outros países. De acordo com dados publicados pela BBC Brasil (2018), mais de 22 mil haitianos optaram pelo Brasil, onde buscam, diariamente, por melhores condições de vida. Depois do terremoto, o Brasil foi o país que abriu as portas para os imigrantes, por razões humanitárias.

Ao abordar esse contexto surgem questionamentos. Como se adaptar em um ambiente cuja cultura é totalmente diferente? Como viver em um país sem saber falar a língua, o português? Como os brasileiros auxiliaram? Enfrentaram preconceito? Pretendem ficar?

Brasil x Haiti - A vinda

Por decorrência do terremoto que devastou o Haiti, milhares de haitianos perderam suas casas, empregos e famílias. Tendo em vista, também, que a situação econômica no país já era complexa. Além disso, muitos ficaram desabrigados, sem acesso à água, alimento, saúde ou educação. E, quando chegaram ao Brasil, utilizaram o "refúgio" como forma de entrada e permanência. Porém, o instituto de refúgio não cabe a eles, tendo em vista que vieram em busca de melhores condições econômicas, de modo que o país de origem não conseguia suprir com as circunstâncias. De acordo com Isabella Traub (2017), o Comitê Nacional de Refugiados (Conare) levou as solicitações de refúgio para o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), e o Governo Federal aprovou e concedeu visto permanente por tempo determinado e razões humanitárias, como uma forma de facilitar a vinda dos haitianos. No entanto, a partir de 2012, quando o Brasil passou a caracterizar esses estrangeiros de forma diferenciada, foram emitidos vistos conforme a legislação do Conselho nacional de Imigração, apontada pela Resolução Normativa 97/2010. Depois de receber o documento, os haitianos possuem um prazo de até cinco anos para comprovar suas situações de emprego e residência no Brasil.

Porém, o contato entre o Brasil e o Haiti inicia ainda em 2004, com a possibilidade de o Brasil ocupar uma cadeira na ONU, como descreve a pedagoga, pesquisadora e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Imigrações para a Região Oeste de Santa Catarina (Geirosc) e, ainda, voluntária da Pastoral do Migrante de Nova Erechim, Sandra de Avila Farias Bordignon. "Com isso, o Brasil foi convidado a chefiar a Missão das Nações Unidas para estabilização no Haiti (Minustah), em 2004. Estrategicamente, o governo utiliza da seleção campeã do mundo, na copa de 2002, e entra para capacitar o exército no Haiti. Se você pesquisar pelo Jogo da Paz de 2004, você vai ver o Brasil parando o país", explica Sandra. Então, a partir deste ano, as organizações brasileiras estavam protegendo, organizando e tentando estabilizar o Haiti. Com o terremoto, em 2010, o Brasil, então, abre as portas para os haitianos que decidem buscar por melhores condições no território brasileiro.

Portanto, o país, sob essas condições, tornou-se uma oportunidade para os haitianos reconstruírem suas vidas, buscarem por melhores condições de trabalho e, também, tentarem uma forma de auxiliar as pessoas que ainda permanecem com suas vidas no Haiti. O Brasil, enfim, não é a primeira opção do haitiano. "Quando você começa a pesquisar, você vê que o Brasil aparece na sétima opção. Primeiro aparecem os Estados Unidos, o Canadá, a França. Mas, era um país que estava com as portas abertas", avalia Sandra. A rota mais comum a ser usada pelos imigrantes passa pela República Dominicana, Equador e Peru, até chegar ao Brasil.

A legislação, então, se adapta aos imigrantes que optaram pelo Brasil, de forma que todos sejam acolhidos. "Teoricamente, nós não tínhamos agentes públicos preparados. Os haitianos entraram pelo Norte, mas as cidades não tinham estrutura adequada. Neste período, chegaram a entrar no Brasil cerca de 60 mil haitianos e o Brasil precisou se adaptar para receber os imigrantes", explica Sandra. Esse processo migratório, no entanto, gerou um grande contingente de haitianos, inclusive, no Oeste de Santa Catarina.

Renata Ely/Voluntárias da Pastoral do Migrante de Nova Erechim, Sandra, Tanara e Tereza, auxiliaram os imigrantes

No Oeste de Santa Catarina...

Atualmente, a presença de imigrantes haitianos na região é realidade, de forma que a demanda por mão de obra foi responsável por grande parte dos movimentos. Segundo a coordenadora, o primeiro movimento foi através da sinalização de empresários que trazem os primeiros imigrantes, do sexo masculino, para a região em 2011. Como a ação possibilitou aos haitianos a aquisição de renda, subsídio das famílias que ainda vivem no Haiti e melhores condições de vida, tornou-se satisfatório. "É que no Haiti nós vivemos assim, crescemos vendo nossos pais viajarem para fora do país, para trabalhar e manter a família no Haiti. É uma forma de ajudar a família, conseguir ter as coisas, como casa, carro, tudo. Eu deixei o Haiti na ideia de vir para o Brasil trabalhar, ganhar dinheiro e conseguir ter uma outra vida. Uma vida melhor. Era uma forma de buscar as coisas, porque no Haiti é difícil", relata o imigrante haitiano, Shiller Pierre, de 32 anos, que veio ao Brasil em outubro de 2013 e atualmente reside em Pinhalzinho, Santa Catarina. Shiller é casado com a professora brasileira, Karin Aline Henzel, com quem tem uma filha, Sarah, de dois anos.

 "Eu deixei o Haiti na ideia de vir para o Brasil trabalhar, ganhar dinheiro e conseguir ter uma outra vida. Uma vida melhor" - Shiller

No entanto, além das atividades do cotidiano, os haitianos também apresentaram necessidades de apropriação de costumes da região, adaptação ao novo ambiente, e dificuldades da língua, tendo em vista que no Haiti a língua nativa é o crioulo e alguns dominam o francês. Desta forma, Sandra cita que a mão de obra imigrante se torna viável de modo que, no período, centenas de haitianos chegam na região, enquanto o município de Nova Erechim recebe 48. O segundo movimento é caracterizado por trazer as mulheres haitianas, e o terceiro, as crianças. "Muitas são buscadas no Haiti, e muitas também nascem na região. Algumas nascem como brasileiras, cidadãs de direito. São casos em que as crianças vão para a escola, falam português e quando chegam em casa, falam crioulo e francês", ressalta a coordenadora.

O fenômeno comunicativo social, caracterizado por notificações entre haitianos sobre oportunidades de emprego e locais para morar, é um fato que ocorre com o imigrante haitiano, Stanley Cezar, de 30 anos, que veio ao Brasil em 2013 e reside em Nova Erechim. "Eu nunca pensava em um dia vir para o Brasil. Quando aconteceu o terremoto, eu estava em Santo Domingo, na República Dominicana. Quando terminei a escola no Haiti, fui para lá estudar na Universidade. Fiquei um ano, até que minha mãe, que mora na França, me falou que não ia conseguir me ajudar mais e eu teria que escolher entre voltar ao Haiti ou ir para outro lugar", explica Cezar. Dessa forma, o imigrante, por ter conhecimento sobre os haitianos que estavam vindo ao Brasil, decidiu se informar e vir. Quando chegou no Acre, ainda não sabia para onde iria. No entanto, com a grande quantidade de imigrantes que ficavam por ali, fez amizade com um que iria até Nova Erechim, onde tinha um primo e conseguiria trabalho. O amigo, então, convidou Stanley para ir com ele, que aceitou o convite e reside, até hoje, no município do Oeste catarinense.

Renata Ely/O imigrante haitiano, Shiller Pierre, chegou ao Brasil em outubro de 2013

Acolhimento e adaptação

Em Nova Erechim, 48 imigrantes haitianos chegam em maio de 2013, buscados pelo frigorifico Friaves, devido à mão de obra oferecida. "Foi um estranhamento total, principalmente pela cor da pele e língua. Eles chegam falando francês crioulo, e possuem uma cultura totalmente diferente da nossa. Nós conversávamos com eles o que conseguíamos. As pessoas surgiam com questionamentos sobre onde fica o Haiti, a maioria pensava que o país está situado na África", relata Sandra.

Um grupo de voluntários, junto a comunidade, atendeu aos imigrantes, de forma a tentar auxiliar em questões sociais. No entanto, Sandra faz parte do grupo. "As pessoas em geral foram buscando formas de suprir com as necessidades básicas. Quando eles chegaram, era o pior inverno que tínhamos, muito rigoroso. E no Haiti não tem frio, eles não eram acostumados, não tinham roupas e muito menos cobertas. Em um primeiro momento, nós pensávamos que era só isso que eles precisavam, questão de comida, roupas, cobertas. Mas, com eles não conseguindo se comunicar, nós percebemos que a necessidade era outra. Era a língua. Eles precisavam aprender o português", explica a coordenadora.

Para auxiliar na questão da língua, Sandra e mais três voluntárias se reuniram. Na época, a escola do município cedeu uma sala para a realização de aulas de português. "Era de uma forma muito caseira, sem ter o entendimento completo da língua. Mas fomos suprindo, trabalhando para auxiliar". Outra voluntária da Pastoral do Migrante, Tanara Zunkowiski, acrescenta que foram comprados dicionários em francês para auxiliar o tratamento da língua, tendo em vista que grande parte dos imigrantes dominavam o idioma.

Para Stanley, a aprendizagem da língua portuguesa foi mais fácil, devido ao contato com outras línguas que os imigrantes possuem desde pequenos. "Eu falo francês, crioulo e agora posso dizer que português e inglês também. Quando cheguei, não sabia nada do português. Mas, eu penso que a melhor forma de aprender a língua é conviver no país mesmo, fica mais fácil. Era difícil para se comunicar, no início, porque eu não falava nada. Quando saia com os amigos, eles falavam coisas e eu só dava risada, porque não sabia sobre o que estavam falando. Então, eu anotava algumas coisas no celular enquanto eles falavam, depois escutava e decorava. Assim fui aprendendo", relata Stanley.

Divulgação/Stanley Cezar visitou o Haiti duas vezes, desde que veio ao Brasil
Já Shiller, descreve que entre os primeiros três meses a comunicação foi um fator difícil para a adaptação no país estrangeiro. "Para falar, era bem difícil. Quando eu via que alguém estava chegando em mim para conversar, eu ficava com medo, porque não iria entender nada do que ela iria conversar comigo e não saberia responder. Mas, depois de uns seis meses, me acostumei. Aprendi com a ajuda da Karin, ela teve muita paciência comigo", conta o imigrante. Karin, a esposa, foi responsável por auxiliar o imigrante na adaptação, de modo que os dois se conheceram nos primeiros meses do haitiano no Brasil. A esposa, no entanto, foi o motivo que fez com que Shiller decidisse sair de Águas de Chapecó para morar em Pinhalzinho. "Eu sempre andava com uma caneta e um papel nos bolsos e, quando saia com ela, escrevia as palavras que ela falava e assim fui aprendendo. Posso dizer que, depois de um ano morando aqui, estava tranquilo quanto a língua", acrescenta Shiller.

 "Depois, nós começamos a fazer campanhas, as pessoas passaram a apadrinhar dicionários. Então, nós conseguíamos amigos que compravam ou que mandavam dinheiro para auxiliar na compra. Foram algumas ações neste sentido que foram estratégicas para a integração deles", explica Sandra. No mesmo movimento, advogados também foram buscados para apoiar em questões trabalhistas, pelas quais os haitianos, até então, não possuíam conhecimento. "Nós queríamos esclarecimentos, eles precisavam entender como as coisas funcionam, o porquê de receber o valor "x", o porquê do desconto, o que eram os direitos sobre férias, 13º salário e outros. Era uma forma de ensinar o que eram os direitos trabalhistas que eles possuíam enquanto trabalhavam no Brasil". Desta forma, palestras com o intuito esclarecedor foram realizadas aos haitianos no município de Nova Erechim.

Diversas ações foram realizadas como formas de auxiliar a adaptação dos imigrantes haitianos no Brasil, com participação do poder público também. "Foi o que nos ajudou na questão de saúde, por exemplo. Todos possuem o direito a carteirinha do SUS (Sistema Único de Saúde), porém, o horário do Posto de Saúde não contempla o horário de trabalho deles. Então, nós precisávamos abrir o ambiente também no sábado pela manhã, além de precisar de um servidor para atender a demanda", explica Sandra. Desta forma, a administração municipal de Nova Erechim auxiliou para que os imigrantes usufruíssem de seus direitos na área da saúde.

Acesso à língua portuguesa

Divulgação/A Pastoral do Migrante, em parceria com a Secretaria de Educação de Nova Erechim, realiza aulas de português para mulheres haitianas

É imprescindível ressaltar que a falta de comunicação é um fator que retardou alguns processos dos imigrantes no país e, por isso, Sandra descreve que a "tecla" de aulas de português para facilitar a questão foi muito debatida. "Hoje, nós temos muitos deles que dominam o português e acabam sendo tradutores para outros que chegam. Por isso, nós estamos sempre buscando formas de realizar ações voltadas ao domínio da língua portuguesa aos imigrantes", avalia. Com isso, as voluntárias da Pastoral do Migrante, em parceria com a Secretaria de Educação do município de Nova Erechim e Geirosc, realizam uma ação voltada a um curso de português específico para as mulheres haitianas, todas as terças-feiras. "Porque são as mulheres, eu acho, que possuem mais dificuldades. Aqui, nós vemos que elas cumprem o papel de mães, cuidar da casa e, fora isso, oportunizamos aulas de língua portuguesa. Nós passamos de casa em casa, temos 15 mulheres aqui. Tem algumas que já estão há três anos e ainda não falam português. Por isso, como vamos convidar elas para participarem de palestras e como inseri-las em questões do município? Assim, optamos pelo curso.", explica Sandra.

Para auxiliar nesta questão, as voluntárias contam com a parceria da professora e esposa do Shiller, Karin, por possuir determinada experiência com a atividade. "Em Águas de Chapecó, desde junho, eu e o Shiller ensinamos o português aos haitianos. Ele me ajuda porque, mesmo que eu aprendi e entenda um pouco o crioulo, a língua nativa deles, tem algumas coisas que eu não sei explicar. Então, trabalhamos juntos, eu explico em português e ele traduz em crioulo. É difícil ensinar português para uma pessoa que não entende nenhuma palavra do que você fala. Então, se não tiver essa mediação, entre o português e o crioulo, eles não conseguem aprender. E agora, iniciamos as aulas em Nova Erechim para as mulheres", explica Karin. A vivência, para a professora de Biologia, mesmo não sendo especializada na área de Letras, é interessante e enriquecedora. Além de participar de ações voltadas ao ensino da língua, o casal também auxilia em questões humanitárias, como por exemplo, ajudou uma associação de haitianos, em outubro, no município de Águas de Chapecó, a realizar uma festa para as crianças haitianas. "Aqui em Pinhalzinho, muitas pessoas nos ajudaram com doações, desde doces e brinquedos para as crianças. Conseguimos fazer uma festa bem legal, as crianças ficaram muito contentes. É interessante porque, além de aprender sobre outra cultura, quando comecei a conviver com essas pessoas, aprendi muitas coisas e também me ajuda porque eu aprendo ainda mais o crioulo. Eu sempre digo que nós aprendemos juntos, eu ensino o português e eles me ensinam o crioulo. Eu quero muito que o Shiller ensine a Sarah, nossa filha, a falar o crioulo também", cita Karin.

Divulgação/Pinhalenses auxiliaram na doação de brinquedos para festa do dia das crianças aos haitianos

A vida no Haiti e no Brasil

As dificuldades do país de origem, o Haiti, fez com que os imigrantes buscassem melhores condições em outros lugares. "No Haiti não era fácil. As pessoas pensam que não tem trabalho, até tem, mas são poucos. Por isso, a nossa cultura é viajar. Em todo o mundo existem haitianos", conta Stanley. O imigrante relata que, por se tratar do país de origem, lembra do Haiti com amor. Gostava de sair com os amigos, ficar com a família, tomar cerveja e se divertir, além de ter um grupo de amigos com o qual se encontrava mensalmente para encontros em que o principal objetivo era conversar. "Nós conversávamos sobre tudo. Política, o que queríamos para o futuro, o que poderíamos fazer depois de cinco anos, o lado bom e ruim de beber, fumar e várias outras coisas. Isso nos ajudava, era uma conversa construtiva, mudava opiniões e pensamentos". A roda de conversas é algo que o haitiano sente falta, assim como os amigos e a família.

Shiller, no entanto, avalia que a mudança de vida foi o principal objetivo de mudança, devido às condições precárias no Haiti. "Era para mudar algumas coisas, como estudar e trabalhar. Porque no Haiti é difícil. Eu pensei que eu precisava sair de lá para ter uma família, conseguir um trabalho, conseguir estudar e mudar de vida. Agora eu tenho minha família aqui. Mas, em um tempo atrás, eu sempre pensava que, depois de um tempo, iria voltar para o meu país para viver os meus últimos dias lá". Porém, o imigrante comenta que o futuro é incerto e que a saudade do Haiti é enorme. "Sinto saudade de tudo que vivi lá, dos meus amigos, de viver com a minha mãe, da comida, da praia", conta Shiller.

Além disso, muitos dos haitianos que vivem no Brasil, usam o trabalho para conseguir dinheiro e mandar para as famílias que ainda vivem no Haiti. Shiller, por exemplo, relata que a expectativa quanto ao salário não foram supridas, de modo que pensavam que conseguiriam dinheiro para sustentar a família e viver bem. "Para conseguir ajudar minha mãe e meu irmão, no Haiti, eu preciso comprar o dólar e isso faz com que o dinheiro vireS em nada. Nós pensávamos que iriamos conseguir trabalho, ganhar dinheiro e conseguir fazer muita coisa lá no Haiti. Era essa nossa ideia", relata.

Stanley viajou duas vezes para visitar a família no país de origem, uma vez em agosto de 2017 e outra em agosto deste ano, quando participou do casamento de sua mãe. Shiller, por sua vez, ainda não visitou, tendo em vista que os gastos para a viagem são bastante altos. Os imigrantes, no entanto, ressaltam que gostam de morar no Brasil, sobretudo em Pinhalzinho e Nova Erechim.

Renata Ely/Sarah Henzel Pierre é filha do imigrante haitiano, Shiller Pierre, e da brasileira, Karin Aline Henzel

Paixão pela seleção brasileira

"Eu conheci o Brasil pelo futebol, porque sempre gostei muito. Eu gostava do Ronaldinho Gaúcho. Quando estava no Haiti, praticamente todo mundo torcia pela seleção brasileira. Lá nós somos muito mais loucos do que os brasileiros. Nos jogos, fazíamos várias apostas com carros, casas, dinheiro, tudo. Hoje, eu penso diferente", conta Stanley sobre o amor pela seleção brasileira, desde criança. A voluntária, Tanara, relata que o amor e a loucura dos haitianos pelo futebol do Brasil é maior do que brasileiros. "Eles estavam inconformados, durante a Copa do Mundo deste ano, que não viam bandeiras do Brasil espalhadas pela cidade, não viam as pessoas comemorando nas ruas e fazendo festa. Lá no Haiti, as ruas costumavam ser decoradas com as cores do Brasil".

Para Shiller, a situação não é diferente. O imigrante também conhecia e acompanhava a seleção brasileira desde pequeno, no Haiti. "Eu ouvia muito falar do Brasil pelo time, isso é muito legal. Quando o Brasil abriu as portas para nós, todos pensavam 'nossa, é lá onde tem o time do Brasil, vamos lá e vamos conseguir ver todos os jogadores'. Nós todos pensávamos assim, eu também pensava", conta Shiller.

As várias faces do preconceito

"Eu vejo que aqui em Nova Erechim é muito maior o acolhimento do que o preconceito. Não tenho dúvidas sobre isso e acredito que eles também não tenham. Tem uma haitiana que me falou que é aqui no Brasil que ela vive negra, porque no Haiti ela era igual a todas as outras", relata Sandra. Como uma forma de ampliar o conhecimento dos brasileiros sobre questões da imigração, muitas vezes, as voluntárias levam os haitianos nas escolas para contar sobre suas trajetórias e diferenças. Trata-se de um modo de despertar a curiosidade das crianças e de, consequentemente, se habituarem em um mundo com diferenças. Além disso, o conhecimento das crianças sobre o tema desperta a curiosidade dos pais, que também passam a conhecer diferentes histórias.

Para o imigrante, Stanley, o preconceito foi pouco perceptível em Nova Erechim, de modo que avalia que o julgamento não acontece apenas no Brasil. "No mundo inteiro existe preconceito. Se uma pessoa branca ir no Haiti, essa pessoa também vai se tornar alguém diferente lá. É uma questão que não acontece só aqui. Mas, é complicado quando acontece comigo. Às vezes, quando saio, não saio para incomodar ninguém, saio para me divertir, como todos os outros, e as pessoas me olham diferente", declara.

Já Shiller, que viveu quatro meses no país vizinho do Haiti, na República Dominicana, afirma que o preconceito existente lá é muito maior do que no Brasil. "Aqui eu posso dizer que não senti preconceito. Ninguém nunca chegou em mim e falou alguma coisa ruim. Estou há cinco anos no Brasil e não sofri preconceito como sofri um dia na República Dominicana. Lá sim é bem difícil, as pessoas chegam e falam na cara, xingam, tratam mal mesmo. Aqui, eu penso assim: a pessoa pode até estar pensando algo ruim de mim, mas se não me falar nada, eu estou tranquilo. Até porque, eu não sou muito acostumado com as pessoas brasileiras para entender bem o jeito deles quando tem preconceito", explica. Já sua esposa, Karin, afirma que o preconceito na região existe, porém de uma forma velada. "Tem pessoas que nós percebemos que evitam, que não chegam perto. Mas, pelo menos não é aquela forma de preconceito em que as pessoas xingam e atacam", pondera.

Somos todos imigrantes

"Esse movimento é caracterizado, em um primeiro momento, diferente dos outros. Porque parece que está tudo estabelecido, até chegar os imigrantes e dar uma bagunçada. Mas não, se formos ver ao fundo, todos nós somos imigrantes, de alguma forma ou de outra", articula Sandra. A coordenadora se refere que todas as pessoas se tornam imigrantes, porque hoje é comum as pessoas morarem em locais diferentes dos quais nasceram, fazer intercâmbio e buscar novas oportunidades em cidades, Estados e países distintos. Até porque, na região Oeste, muitos moradores são descentes de outras nacionalidades. "Os nossos descendentes buscavam pelas mesmas coisas, que são oportunidades e felicidade, o mesmo que os imigrantes haitianos buscam hoje em nossa região".

"Nós somos imigrantes aqui no Brasil e aqui em Santa Catarina. Mas, as pessoas acham que só nós que somos imigrantes aqui. Tem alemão, tem italiano, tem vários. Porém, nós nos diferenciamos pela cor também, então as pessoas pensam que só nós somos imigrantes", ressalta Stanley, sobre a questão da imigração.

A cultura trazida pelos imigrantes haitianos é capaz de ampliar os conhecimentos e diminuir preconceitos. "Desta forma, nós passamos a perceber que o mundo não é só aqui, não é só Nova Erechim, não é só Pinhalzinho e não é só Brasil. O mundo é muito maior, e nós conseguimos ampliar a nossa visão pelo olhar do imigrante", avalia Sandra. Em Nova Erechim, com o apoio da comunidade, será realizado, no dia 07 de dezembro deste ano, o 2º Jantar Típico Haitiano (Manje Kreyól). É um evento aberto à sociedade que traz questões da gastronomia do Haiti, além de facilitar a confraternização e inserção dos imigrantes com as pessoas do município.

A questão básica do respeito para os haitianos é essencial. Dizer bom dia, boa tarde, cumprimentar quando passam pelas ruas, é algo normal e que faz parte do cotidiano. Porém, é algo que requer reciprocidade. "Eu sempre gostava de cumprimentar as pessoas na rua, porque para mim é uma questão de respeito. Aqui as coisas são um pouco diferentes. Agora eu também cumprimento, mas apenas quem eu conheço. Às vezes, quando cumprimentava uma pessoa na rua, as pessoas não me respondiam ou fingiam que não ouviam. Foi aí que eu pensei: vou mudar. Vou cumprimentar apenas quem conheço ou responder quem me cumprimenta", relata Stanley.

Ter um mundo sem fronteiras não é apenas um desejo, é utopia. Hoje, as mercadorias circulam pelo mundo com maior facilidade do que as pessoas. "Ninguém fala mal ou reclama dos imigrantes aqui em Nova Erechim, porque eles são pessoas tranquilas, estão inseridos, são trabalhadores e não se metem em confusão. É bom para a sociedade, porque eu penso que tudo vem para o aprendizado, nada em nossa vida é por acaso. Esses imigrantes precisaram vir para dar uma sacudida no povo e fazer com que percebessem as coisas", avalia Tanara. A luta das voluntárias é por um mundo em que se construam mais pontes e menos muros, além de sensibilizar as pessoas sobre os imigrantes e sobre o quanto o mundo precisa ser justo para todos. Inserir os imigrantes na sociedade, na educação, no trabalho, na cultura e no lazer, é essencial. É mais do que uma atitude humanitária. É uma atitude de amor e respeito ao próximo.

Stanley Cezar

Divulgação/Stanley Cezar

Stanley Cezar, de 30 anos, veio ao Brasil em 2013 e trabalha como operador de máquinas na Friaves, em Nova Erechim. Saiu do Haiti um ano antes de vir ao Brasil, com destino à Santo Domingo, na República Dominicana. A intenção era estudar, tendo em vista que o imigrante desejava cursar medicina. Ficou um ano na República Dominicana, até que teve que optar por voltar ao Haiti ou ir para outro país.

"Depois de um ano na faculdade, eu teria que escolher a área que queria seguir. Mas, minha mãe que mora na França não conseguia mais me ajudar com estudos, aluguel e comida", relata Stanley. Desta forma, o haitiano optou pelo Brasil, que estava com as portas abertas para receber os imigrantes, com a intenção de buscar melhores condições, trabalho e estudo.

Stanley, no entanto, possui certificados de diversos cursos que faz há dois anos na Pet Cursos, em Pinhalzinho. Entre eles, cita-se o inglês básico, inglês intermediário, informática e auxiliar administrativo com secretariado. "Quando cheguei ao Brasil, eu sabia que precisava buscar alguma coisa, estudar algo para a vida. Já fiz o teste do Enem também e neste ano fiz novamente", conta.

Se conseguir entrar na faculdade, o imigrante afirma que é uma chance, uma oportunidade. Porém, avalia que, no Brasil, não pode escolher o que quer cursar. "A vida é muito complicada, eu vou ter que escolher o que eu penso que é mais fácil para conseguir trabalho. Se eu não conseguir esse ano, vou tentar ir para a França, porque minha mãe, irmãos, tios, primo e namorada moram lá". No Haiti, Stanley também tem parentes, de modo que já fez duas viagens até lá, uma quando sua mãe casou. "Quando eu falo de família, são todos. Se eu tiver dinheiro quero ajudar todos que eu conseguir", exalta o imigrante haitiano.

Shiller Pierre

Renata Ely/Família de Shiller Pierre

Shiller Pierre, de 32 anos, veio ao Brasil em 08 de outubro de 2013 e trabalha na empresa SK Baterias, em Pinhalzinho. É casado com a professora, Karin Aline Henzel, com quem tem uma filha, Sarah Henzel Pierre, de dois anos. Quando chegou ao Brasil, uma empresa de Águas de Chapecó buscou ele e outros haitianos, na fronteira, para trabalhar. Permaneceu no município por alguns meses, até conhecer Karin e ir morar em Pinhalzinho. Foi o primeiro haitiano a residir na Capital da Amizade.

O imigrante relata que quando veio ao Brasil não imaginava a imensidade do país, mas que, ao chegar, se surpreendeu. "Eu me assustei, porque é outra coisa, bem diferente do que o meu país", conta. A busca de Shiller no Brasil era por melhores condições, trabalho e dinheiro para ajudar a família. O pai de Shiller mora em uma ilha, Guadalupe, considerado como um "pedacinho" da França longe da Europa. Alguns parentes vivem nos Estados Unidos e o seu irmão está no Brasil, em Joinville, enquanto o restante da família permanece no Haiti. "Nós pensamos que aqui íamos ganhar mais ou menos como nossos pais nos outros países. Mas o salário é muito mais baixo", relata o imigrante.

A escolha pelo Brasil ocorreu devido à facilidade de entrar, tendo em vista que o Brasil facilitou a vinda por condições humanitárias. "Nos EUA ou na França, onde está meu pai, é muito mais difícil para entrar. Eu gostaria de estar junto ao meu pai, mas o Brasil nos atende com os braços abertos", conta.

A visita ao Haiti, no entanto, ainda não foi possível. Porém, Shiller afirma que é um desejo. "A passagem é muito cara, o problema são os gastos", conta. A esposa, Karin, aprendeu um pouco do crioulo na convivência com o imigrante. "Eu falo um pouco, não tudo. Mas entendo praticamente tudo do que eles falam, para falar é que eu tenho um pouco de insegurança. Se hoje eu caísse de paraquedas no Haiti, com o básico eu me viro bem tranquilo", explica Karin.

Para conhecer um pouco sobre a cultura haitiana, participe do 2º Jantar Típico Haitiano (Manje Kreyól), que ocorrerá no Salão Comunitário da Capela Nossa Senhora de Fátima, dia 07 de dezembro, em Nova Erechim. 


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