A exposição Marias: Florir é Resistir é mais do que um projeto artístico. É um manifesto. Uma denúncia viva.
Elas têm nome de flor. Mas em comum, carregam cicatrizes profundas. Em Pinhalzinho, a exposição Marias: Florir é Resistir transforma dor em arte, histórias em alerta, e mulheres em espelhos para outras mulheres que ainda não conseguiram romper o ciclo da violência.
O nome “Maria” foi escolhido em referência à canção homônima de Milton Nascimento, símbolo de luta, dor e esperança. “Maria, Maria é um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta...” — a letra ecoa a essência das mulheres retratadas: fortes, invisibilizadas e determinadas a florescer, apesar da brutalidade que viveram.
A mostra reúne o testemunho de nove mulheres pinhalenses que sobreviveram aos anos de humilhações, agressões, ameaças e silêncios. Elas decidiram transformar suas trajetórias em símbolos de luta — cada flor representando uma vida que floresceu depois da dor.
Quando a arte grita o que o silêncio sufocou
“A vida começa quando a violência acaba.” A frase de Maria da Penha não é apenas uma citação na parede — é o ponto de partida da exposição que deseja percorrer espaços públicos da região. A iniciativa preserva o anonimato das mulheres através de representações simbólicas: fotos, cores, composições artísticas. Mas não poupa a sociedade do incômodo de encarar a realidade.
Segundo Ivone Orso, secretária de Assistência Social de Pinhalzinho, a proposta é itinerante, provocativa e profundamente necessária. “Essas mulheres, que viveram situações gravíssimas, decidiram romper com o medo. A exposição é um convite à denúncia, à reflexão e à mudança. Precisamos falar sobre isso — dentro de casa, nas escolas, nos espaços públicos”, afirma.
Cada obra é fruto de uma história real. Algumas trazem relatos de quem sobreviveu a décadas de violência dentro de casa — com agressões que iam desde ameaças verbais até tentativas de homicídio. “Tem mulher que passou 30 anos sob controle absoluto. Quando ela finalmente disse ‘basta’, foi ameaçada de morte”, diz Ivone.
A sociedade ensina a resistir — mas ainda não ensina a não agredir
Um dos maiores dilemas enfrentados pelas equipes que atuam na proteção dessas mulheres é a assimetria no combate à violência doméstica. De um lado, campanhas, programas, apoio psicológico e medidas protetivas para mulheres. Do outro, uma sociedade que ainda falha em ensinar os homens a não violentar.
A sociedade prepara a mulher para fugir, se defender, buscar ajuda. Mas o agressor segue impune no seu círculo social, muitas vezes sendo até defendido. Enquanto isso, ela muda de cidade, esconde os filhos, vive sob medo constante, mesmo com medidas protetivas em vigor.
Segundo o policial militar Marcelo Wundervald, há uma rede ativa entre Polícia Militar, Judiciário, Polícia Civil, e órgãos como as secretarias municipais de Assistência Social. Há casos em que mesmo com ordens judiciais o agressor volta, invade a casa, destrói tudo, ameaça de novo. “A gente precisa fazer mais do que proteger — precisamos transformar.”
Flores que sangram
Conheça as pinhalenses que dão vida artística às nove Marias que inspiram a exposição:
- Maria Margarida Inglesa vivenciou abandono e violência enquanto cuidava sozinha do filho com agravos de saúde, enfrentando acusações e difamações por parte da família do ex-companheiro, que chegou a cercar a casa com arame farpado para forçá-la a sair.
- Maria Rosa Amarela sofreu agressões físicas e psicológicas por 24 anos, inclusive um incêndio criminoso provocado pelo marido. “Fazem 30 anos que ele queimou a minha casa”, relembra.
- Maria Lavanda-do-mar passou mais de duas décadas sob abuso moral e financeiro. Fugiu com os filhos, abandonou tudo, mas hoje vive com liberdade e autoestima fortalecida.
- Maria Rosa Vermelha viveu 35 anos sob todas as formas de violência. Só encontrou paz quando disse “chega” e enfrentou o agressor. “Pode matar, mas eu não quero mais”, disse a ele.
- Maria Gerbera Rosa sobreviveu a dois relacionamentos abusivos. Encontrou na psicoterapia o caminho para romper o ciclo, mudar de cidade e reconstruir sua vida com autoconhecimento.
- Maria Girassol venceu o isolamento e a desvalorização em um relacionamento com um homem dependente químico. Hoje, vive com equilíbrio e confiança.
- Maria Branquinha sofreu traições, desrespeito e violência emocional. Procurou apoio, fortaleceu sua autoestima e voltou a sonhar com um futuro de paz ao lado dos filhos.
- Maria Astromélia passou 17 anos sob terror psicológico, agressões físicas, uso de armas e medo. Hoje reconstrói sua vida com dignidade. “Ele descarregou a arma dentro do quarto”, lembra.
- Maria Crisântemo Rosa sobreviveu a quatro anos de controle, abuso físico e psicológico. Quase perdeu a identidade, mas escapou a tempo. “Ele achou que tinha acabado comigo. Quase. Mas eu saí antes.”
E quando não dá tempo?
Algumas Marias não conseguem romper a tempo.

Simone Marca, natural do município vizinho de Serra Alta, mudou-se para Minas Gerais em busca de uma nova vida. Morava por lá e trabalhava como operadora de caixa de um restaurante da família.

Simone foi morta com três facadas enquanto orava, de joelhos, no meio de uma missa, dentro da igreja matriz de Ituiutaba. O autor: seu ex-namorado, que invadiu a celebração religiosa e tirou sua vida diante de dezenas de fiéis.
Simone tinha apenas 30 anos. O fato ocorreu em 2016 e não pode ser esquecido.Sua morte é o alerta máximo. Quantas ainda morrerão antes de conseguir gritar?
O ciclo que se repete
“A violência doméstica ensina duas coisas aos filhos: a ser agressivo ou a aceitar a agressão.” A frase da psicóloga Carla Paiva resume o que está em jogo: não é apenas a mulher que sofre. É toda uma geração que cresce aprendendo que amar também pode doer — e se acostuma com isso.
Por isso, mais do que reprimir, é preciso educar.
A exposição Marias: Florir é Resistir é mais do que um projeto artístico. É um manifesto. Uma denúncia viva. Um espelho social. E um lembrete incômodo: você pode conhecer uma Maria. Ou ser uma delas.
Homenagem aos artistas e profissionais envolvidos
A exposição Marias: Florir é Resistir só se tornou possível graças à sensibilidade, ao compromisso social e ao talento dos artistas orientados pelo Departamento de Cultura de Pinhalzinho. A cada um e cada uma, o nosso sincero reconhecimento.
Artistas participantes:
- Gabriela Niederle – responsável pelos registros fotográficos que compõem a exposição.
- Alessandra Vaccari – artista plástica, contribuiu com pintura em tela com técnica de assemblagem.
- Richard Fernandez – artista plástico, contribuiu com pintura em tela com técnica de assemblagem.
- Fernanda Tomé Ecco – criou peças em macramê sobre casca de palmeira, trazendo textura e natureza à mostra.
- Luciane Utzig – confeccionou bonecas que representam aspectos simbólicos da violência sofrida e superada.
- Diovana J. Werlang Marchesan – apresentou trabalhos em patchwork, expressando acolhimento e reconstrução.
- Maiara da Silva – desenvolveu obras com assemblagem em jeans e pintura em aquarela, combinando força e delicadeza.
- Jusciane Vedovatto – criou uma delicada e simbólica obra de arte com velas aromáticas, representando luz, cura e reconexão com a essência feminina.
- Márcio Gabriel Moreira Monte Rodrigues – criou brincos e colar em crochê que farão parte de uma coleção autoral inspirada no projeto, representando identidade e expressão.
- Lara Worma de Souza – contribuiu com desenhos em lápis crayon e aquarela, marcando a sutileza dos detalhes humanos.
Por: Diego Kirch - Imprensa do Povo
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